A geração Harry Potter
A magia vai se desfazer. A última aventura do menino feiticeiro Harry Potter estreia mundialmente nesta semana com o longa-metragem Harry Potter e as relíquias da morte – Parte 1. A segunda parte, como o epílogo, entrará em cartaz em julho do ano que vem. Ao final, serão oito megaproduções baseadas na série de sete romances da escritora inglesa J.K. Rowling. Publicados de 1997 a 2007, os livros foram traduzidos para 69 idiomas e venderam mundialmente 400 milhões de exemplares. Formam a série infantojuvenil de livros mais vendida da história. No cinema, o sucesso não foi menos espantoso.
Harry Potter já é a franquia de maior êxito em 115 anos de existência do cinema. De 2001 a 2009, os seis filmes da saga faturaram US$ 5,4 bilhões em bilheteria. Ou US$ 1 bilhão por sequência, um recorde no gênero. Quase o dobro do que rendeu cada uma das três partes da franquia Homem-Aranha. Mais que o dobro do que ganhou cada filme da série Guerra nas estrelas – de 1977 a 2005.
A estimativa do estúdio Warner, detentor dos direitos da história, é que em 2011 a “saga de Harry” atinja a marca de US$ 8 bilhões – mesmo tratando-se de uma narrativa cujo final os fãs já conhecem antes de entrar em cartaz. A explicação mais convincente para o fato de multidões aguardarem ansiosamente a penúltima première que envolve seu ídolo é que, na sala de cinema, os fãs não apenas reencontram os heróis Harry Potter, Ron Weasley e Hermione Granger. Eles têm a oportunidade de confrontar a si mesmos.
Não se trata de um fenômeno novo. Toda geração adota, cultiva e acaba se moldando de acordo com seus símbolos culturais. Obras de arte não se tornam obras de arte de magnitude se não conseguirem cativar, captar, definir e até antecipar os anseios dos jovens de um determinado tempo. Às vezes, esse fenômeno é tão extenso que pode definir uma geração. Foi o caso do “mal do século”, um sentimento ultrarromântico que dominou o final do século XVIII, iniciado com o romance Os sofrimentos do jovem Werther, do poeta alemão Wolfgang von Goethe. Lançado em 1774, o livro provocou uma onda de suicídios em toda a Europa – e criou um padrão de comportamento, o jovem pálido, com olheiras e tendências autodestrutivas.
Nos “loucos anos 20”, as histórias de Scott Fitzgerald se acoplaram à dança do charleston e à era do jazz e traduziram o nascente hedonismo de uma geração. Nos anos 50, o rock de Elvis Presley e os filmes de Marlon Brando (O selvagem) e James Dean (Juventude transviada) fizeram a cabeça da geração rock-and-roll. Os hippies, a música psicodélica e a pop art de Andy Warhol formataram a mentalidade libertária dos anos 60. Os geeks atuais se formaram entre doses de música eletrônica, romances de ficção científica de Philip K. Dick e filmes como Guerra nas estrelas e a trilogia Matrix.
Será que Harry Potter se configura um fenômeno semelhante? Seu sucesso comercial – global – é um forte indício de que a obra tem alcance, aderência. E sua longa duração permite influenciar as pessoas durante um amplo período – que abarca a entrada e a saída da adolescência, uma época fértil para a adoção de valores, quando as pessoas enfrentam dilemas existenciais complexos.
Mas a aderência e a duração não são suficientes. O que dizer da mensagem?
Como em qualquer boa escola de bruxaria, os acadêmicos se dividem em dois grupos. O psicólogo Robin Rosenberg, autor do ensaio A psicologia de Harry Potter, se alinha aos que consideram a série escapista. “J.K. Rowling cria um mundo completo”, disse a ÉPOCA. “Ela forneceu a seus fãs a possibilidade de unir suas imaginações à dela e viver nesse mundo fantástico.” Para o crítico americano Harold Bloom, a série é perniciosa. Em entrevista a ÉPOCA, ele disse que Rowling “é subliteratura, um catálogo de lugares-comuns”. De acordo com Bloom, “os livros e os filmes induzem o jovem a acreditar em bobagens como magia negra e superstição e que sua vida pode mudar com uma varinha de condão”. O que eles precisam é “ler os clássicos da literatura fantástica”.
O crítico inglês Colin Duriez, estudioso das histórias fantásticas de C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien, está no grupo que defende Harry Potter. Para ele, a série é carregada de simbolismo. E isso tem uma função pedagógica: os jovens aprendem ética por meio de noções básicas. “As imagens do bem e do mal agora são parte do vocabulário das crianças de todo o mundo”, disse Duriez. “Do ponto de vista da educação, trata-se de uma façanha. Em um mundo aparentemente dominado por personagens seculares, a compreensão tradicional e antiga do mal é incorporada nessa fábula contemporânea e pós-moderna.”
A corrente dos que acreditam no poder formador de Harry Potter parece ser mais forte. Ela inclui desde professores de escola até organizações cristãs, como a rede Beliefnet americana. A relação da série com magia e ocultismo gerou uma polarização entre os que viam nela mensagens éticas, até cristãs, e outros que enxergavam influências pagãs e agnósticas (não há Deus no mundo de Harry). Em 2003, o papa Bento XVI (então cardeal) condenou a série afirmando que sua “sedução sutil” podia “abalar a alma da cristandade antes que ela pudesse se desenvolver apropriadamente”. Seis anos depois, o jornal oficial do Vaticano, L’Osservatore Romano, elogiou a obra por “pregar valores como amizade, altruísmo, lealdade e autossacrifício”.
Esse é, talvez, o maior trunfo da série. J.K. Rowling conseguiu contar uma história com mais ação que digressão, mais valores que peripécias. No livro final, que agora chega ao cinema, Harry Potter depara com dois problemas: a perda de seu mestre, Dumbledore, e a perseguição de Lorde Voldemort e os Comensais da Morte. O órfão escolhido pelas forças da magia para salvar o mundo do Mal completa 17 anos e perde a proteção de que gozava desde pequeno. Sem pai nem mãe e longe da escola de Hogwarts, ele enfrenta os desafios da idade adulta. Vai contar apenas com sua inteligência e a ajuda de seus amigos, Hermione e Ron.
Dividir um livro em dois filmes parece uma jogada comercial. Segundo o produtor David Barron, a motivação foi outra. “Muitas vezes cortamos cenas agradáveis de ler, mas que não ajudavam a avançar a história”, diz. No último volume, isso não foi possível, porque, segundo ele, o livro resolve todos os conflitos e mistérios da série.
Não apenas os conflitos da série, mas também os da vida real, a julgar pelo que dizem os fãs. Ao longo desta reportagem, testemunhos de leitores mostram lições práticas que eles extraíram da série. José Flávio de Bessa Júnior, de 21 anos, estudante de medicina na Universidade Federal de Campina Grande, conta que fazia parte da equipe de um site de fãs de Harry Potter quando sua melhor amiga começou a sofrer uma série de ataques de um dos membros do grupo. Ante as intrigas e acusações, todos se afastaram dela – exceto José. Um tempo depois, os colegas descobriram que as histórias sobre ela eram mentirosas. “Harry Potter me ensinou a importância de cultivar a confiança em alguém quando a amizade é colocada à prova”, diz José.
André Luiz de Almeida, de 18 anos, estudante de música na Universidade Federal de Santa Catarina, diz ter aproveitado os ensinamentos do bruxo dentro de casa. Foi quando ele percebeu que sua madrasta não era tão perfeita quanto idealizava. André diz que se inspirou em Harry – no livro, o bruxo se decepciona ao saber que seu mentor Dumbledore errou na juventude. “Consegui entender que os adultos têm seus defeitos”, afirma.
É claro que a magia da transmissão de valores não é feita por uma obra de arte apenas, por mais bem-sucedida que ela seja. É difícil dizer até onde a série de J.K. Rowling incute valores, até que ponto ela capta características latentes na geração de leitores. O que se pode, sem dúvida, dizer é que ler Harry Potter permite compreender melhor o espírito de nosso tempo.
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